Má Raça
Exposição de escultura e pintura de Abílio Silveira e Vítor Torpedo
Longe de querer provocar polémicas, o título desta exposição confunde-nos e convoca-nos para uma direção consensual ao trabalho dos dois artistas, Victor Torpedo e Abílio Silveira, que se apresentam nesta galeria entre esculturas, colagens e pinturas, plenas de estimulantes metamorfoses e contradições.
Utilizada como adjetivação a expressão má raça, evidentemente, exprime uma conotação negativa, quase darwinista, impossível de normalizar no discurso contemporâneo, em tempos que para além das palavras, se projetam vírgulas, pontos de interrogação e exclamação como projéteis para catapultas.
No entanto, como outras expressões populares, onde o bom e o mau se confundem como imagens vistas ao espelho, má raça serviu do mesmo modo para caracterizar alguém vincadamente independente e autossuficiente, sem medo de assumir o seu presente e o seu destino.
É também como num jogo de espelhos que nos confrontamos ao longo da vida com todos os rituais sociais e litanias que nos induzem a disciplinar a imaginação e esconder os medos, e que procuram (ou desejam) o neutro e a indeterminação como estratégias de posicionamento, numa flutuação de sentidos (como escreveu Roland Barthes) que não se opõe a nada demasiado comprometedor.
Neste sentido, nos dois planos expositivos que apresentamos, definitivamente nada é neutro, e tudo é um processo, o real e a sua representação, o sujeito e o objeto, e os significados não são únicos e imutáveis.
Num plano vertical Victor Torpedo apresenta um conjunto de trabalhos recentes, relacionado o seu interesse pela pintura e pela colagem com o presente período da sua vida, em que trabalha a uma velocidade vertiginosa e desenvolve uma prodigiosa atividade multidisciplinar e compositiva, de que é exemplo a publicação em 2023 de 12 obras musicais em nome próprio, para as quais decidiu criar a capa dos discos.
Desde forma acompanhamos um conjunto de obras que representam não só um retrato da sua criatividade disruptiva, como se inscrevem numa interessantíssima linhagem de artistas plásticos, designers gráficos e fotógrafos, como Reid Miles, Andy Warhol, Robert Frank, Robert Longo ou Raymond Pettibon, que encontraram nas capas de discos um território de grande exposição, que permitiu um experimentalismo entre a cultura musical e as artes visuais.
Num plano horizontal, central no espaço expositivo da galeria, Abílio Silveira apresenta uma seleção de esculturas figurativas de madeira e osso, que representam uma atividade que inicialmente desenvolveu em paralelo com uma carreira consolidada na área da saúde, e que presentemente se assumem como um olhar paradoxal da condição humana, a partir de peças encontradas e trabalhadas sem alterar as suas dimensões e formas originais.
Nas suas próprias palavras a temática expositiva representa:
“Uma vida repleta de paradoxos; desde os 13 anos, a partir dos quais entrei em contacto com a vida dos nossos concidadãos e o sofrimento da mente e do corpo – numa clínica (Senhora das Dores) em Alvaiázere nos finais da década de 50 – até Coimbra, desde de 1964, e sempre ao serviço dos Hospitais da Universidade. Porque refiro a vida como um paradoxo? Porque ao longo dos anos ajudei a viver e atenuar sofrimentos daqueles que nos procuravam, por vezes de forma verdadeiramente dramática e para a qual só a finitude que a todos pertence, era a solução. Nunca vi qualquer iluminado pela ciência da vida que perante a sua falência, os voltasse a trazer à vida – isto no reino animal. Nasci num pequeno lugar, onde só o reino vegetal e animal tinham um entendimento perfeito. A comunicação externa era quase inexistente, logo a nossa vivência naqueles dois mundos era fortíssima. Aprendi que só à natureza morta seria possível dar-lhe forma e vida – esta possibilidade estava no mundo vegetal (onde os animais desaparecidos poderiam ser ressuscitados)... é a isto que chamo paradoxo: Da vida é inexorável a morte; com a natureza morta vi a possibilidade de lhe devolver a vida.”
Nos dois planos expositivos encontramos desta forma um retrato desarmante de dois percursos artísticos que quebram as barreiras da convencionalidade, entre um pai e um filho, e que se assumem ambos como impulsionadores de um desejo profundo de superar a efemeridade.